“Mais controverso é o episódio do Evangelho
de Mateus que alude aos ‘irmãos de Jesus’. No fim do século IV, São Jerônimo,
autor da “Vulgata” – a tradução latina das Escrituras que por séculos foi a
única autorizada pela Igreja Católica – , cravou a ideia de que a palavra grega
seria vaga e, assim, poderia designar ‘primos’. Não, esclarece Lourenço na
introdução, adelphoi significa apenas ‘irmãos’. O tema é
especialmente delicado para a devoção católica a Virgem Maria: se Jesus tinha
irmãos, sua mãe obviamente não se manteve sempre virgem.” (texto da revista
“Veja”)
De tempos em tempos, alguém fica intrigado
com a afirmação contida nos evangelhos sobre “os irmãos e as irmãs” de Jesus.
Estes são citados em dois episódios particulares: a família de Jesus em Mt
12,46-50, cujos paralelos se encontram em Mc 3,31-35; Lc 8,19-21 (Jo 7,3), e a
visita de Jesus a Nazaré em Mt 13,53-58, cujos paralelos se encontram em Mc
6,1-6a; Lc 4,16-30.
Um olhar atento para o uso e o significado do
termo “irmão”, em grego ἀδελφός, que ocorre 38 vezes só no Evangelho
Segundo Mateus, permite tecer diferentes considerações quanto ao tipo de
vínculo ou de parentesco carnal ou espiritual. Vejamos alguns exemplos:
Mt 1,2 é a primeira ocorrência, e menciona
que Jacó gerou Judá e seus irmãos (Ἰούδανκαὶτοὺςἀδελφοὺςαὐτοῦ). Ora, basta ver
Gn 29,15–30,25 para se descobrir que os irmãos de Judá não foram todos filhos
da mesma mãe, pois Jacó gerou filhos, tanto através de Lia (Rúben, Simeão,
Levi, Judá, Issacar, Zabulon e Dina) como de sua escrava Zelfa (Gad e Aser), e
através de Raquel (José e Benjamim) e de sua escrava Bala (Dã, Neftali). Não
obstante isso, o evangelista usou o mesmo termo grego “irmãos” (ἀδελφοὺς). São
todos filhos do mesmo pai Jacó (cf. Gn 42,13), todos são irmãos de Judá, mas
não são todos filhos das mesmas mães.
Mt 5,23-24 encerra uma sentença sobre o
sentido da oferta feita ao altar de Deus. Esta não deve ser feita se existe uma
contenda com “o teu irmão” (ὁἀδελφόςσου), mas primeiro é preciso que haja a
reconciliação. O termo ‘irmão’, aqui, pode ser entendido tanto no sentido de
consanguíneo, como de membro da comunidade de fé, que é a destinatária do
Evangelho de Mateus. O mesmo sentido pode estar subjacente a Mt 5,47 no
contexto do ensinamento sobre o amor aos inimigos. Também em Mt 18,15.21.35, a
palavra ‘irmão’ pode ter o sentido tanto de consanguíneo como de membro da
comunidade de fé.
Mt 14,3 afirma que Filipe é “irmão” (ἀδελφοῦ)
de Herodes Antipas. Ora, sabe-se que eram filhos do mesmo pai, Herodes Magno,
mas não da mesma mãe. Herodes Antipas era filho de Maltace e Filipe era filho
de Cleópatra (fonte: “As dinastias Asmoneia e Herodiana”, Bíblia de Jerusalém
p. 2189).
Mt 23,8 usa o termo “irmãos” (ἀδελφοί),
claramente, com o sentido de membro da comunidade de fé, pois Jesus afirma que
todos são irmãos e só tem a Deus como Pai celeste.
Mt 25,40 alude ao último julgamento, cujo
critério decisivo é o uso da misericórdia, e deve ser entendido em relação a Mt
12,48-50, pois Jesus chamou seus seguidores de “irmãos” (ἀδελφῶν). E de forma
mais restrita, após a sua ressurreição, referiu-se aos apóstolos como seus
“irmãos” (ἀδελφοῖς) em Mt 28,10.
As deduções sobre “os irmãos e as irmãs” de
Jesus não podem ser feitas apenas observando o uso do termo ἀδελφός e
tampouco reduzindo-o apenas ao nível da consanguinidade. O critério decisivo
está no simples fato de que só Jesus é dito “o filho de Maria” (Mc 6,3) ou
quando se diz “tua mãe” (Mt 12,47), ou “a mãe d’Ele” (Mt 13,55). Dizer: “teus
irmãos e tuas irmãs” em referência a Jesus não significa dizer que esses são,
necessariamente, filhos de Maria. Isto, pelo acima exposto, é uma dedução
irrefletida, pois em momento algum “os irmãos e irmãs” de Jesus são ditos
“filhos de Maria”. Se assim o fosse, não faria sentido Jesus, pouco antes de
morrer, consignar Maria aos cuidados do discípulo amado (cf. Jo 19,25-27).
É preciso lembrar que o substrato cultural
dos evangelhos é o mundo semítico e não o mundo greco-romano. Em hebraico e
aramaico o termo ’āḥ possui uma extensão maior, podendo significar
tanto irmão de sangue como parente próximo, primo e até tio (cf. Gn 13,8;
29,15; Lv 10,4). E pouco tem a ver com a “Vulgata de Jerônimo” que manteve,
coerentemente, “frates eios” para a tradução de ἀδελφόςem Mt 12,46 e
13,55. O fato dos evangelistas não usarem o termo “parente” (συγγενής), como em
Mc 6,4; Lc 1,58; 2,44; 14,12; 21,16; Jo 18,26 ou “primo” (ἀνεψιὸς), única
ocorrência em Cl 4,10, não tira o mérito do uso mais extenso do termo ἀδελφός,
mas evidencia ainda mais os laços humanos de Jesus adquiridos pela sua
Encarnação no seio virginal de Maria: tornou-se Irmão por excelência de toda a
Humanidade.
Fonte:
http://arqrio.org/formacao/detalhes/1818/a-controversia-sobre-os-irmaos-de-jesus
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